Vigésimo segundo: O sonho de
todo artista.
As cores
se mesclaram numa bela e fulgurosa imagem, como sinos que soassem com duas
notas elas se misturaram formando um todo harmonioso. O pintor certamente era
um doido varrido, sim: uns olhos arregaçados, babando por vezes sem saber,
cérebro fervilhando, sempre ocupado com mil e uma imaginações, indagassões que
o perseguiam e assaltavam, assim de súbito sem pedir licença. Era como se vozes
diversas, todas de maneira desorganizada e precipitada falassem-lhe ao cérebro.
Um louco do mundo, que colocava nas cores aquelo que há muito já era a mais
viva verdade de sua alma, extraía dos sentimentos mais escondidos, dos detalhes
mais profundos a essência, e ali pincelava, numa tela, que antes em branco
agora de beleza indescritível. Sua mente borbulhava em reflexões diversas, as
dúvidas existenciais acalentavam um lugar específico: seu coração, as muitas
vozes falavam em devaneios diversos, com nexo e desenvolvimento dialético,
quebrando estas regras em algumas ocasiões. Tudo o que era sentido e pensado era
pintado:
Qual é a tua verdade?
Não tenho verdade, sigo andando...
Mas quem raio eres? Queres perder-te no abismo da
vida? Estás insano?
Absolutamente não, ninguém pode dizer uma bobagem
assim.
Assim como o que?
Que alguém têm uma verdade
Infâmia, somente isto, estás fora da normalidade...
Infâmia é perguntar à alguém qual é seu caminho,
pois assim supõem-se um caminho existente, quando na verdade todos os caminhos
são em potencial flores, que se abrem conforme o que se quer. Pus uma
prerrogativa, pois para caminhar há de querer, a vontade é no ser humano o que
lhe dá o acontecimento, que no fundo não passa de uma interpretação, uma
interpretação ora escassa ora vivaz, à isto se resume a vida, pois se tudo
podemos fazer, dependendo somente de escolhas e vontade é certo dizer que somos
tudo em potencial, se posso ser tudo é o mesmo que não ser algo somente por não
ter feito aquela escolha. Assim está posto o teatro da vida.
Não digas asneiras! Até parece que alguém poderia
entender teus pensamentos.
Estes pensamentos não são meus!
Não? – Este não foi proferido em têm absurdamente
irônico, de modo que surtiu certo enfado por parte do pintor. – Quer dizer que
não és tú o difusor de tais atrocidades intelectuais? Então que raios de ser
poderia, se enredar em terrenos tão obtuzos, confusos senão até fétidos?
Não exageres, pois tuas palavras me chegam em tom
ofensivo, explicar-me-ei adequadamente, para que não restem dúvidas: Minhas
palavras são fruto de idéias intuitivas, por isto não são exatamente minhas.
Está certo, queres então dizer que a intuição é um
evento que se localiza fora e não dentro das pessoas, e assim não pertencem à
elas propriamente ditas?
Bastante perspicaz da sua parte.
Como ousas fazer “picuinhas”de minha pessoa?
Não eres sequer pessoa, e sim pensamento como eu.
Bem, é verdade, talvez tenha eu me precipitado um
pouco, mas o fato é que fizeste mal caso de minhas idéias, crendo-me um asno ou
sonso... E isto não agrada a ninguém.
Claro, claro, minhas desculpas.
Isto só não basta para alegrar-me.
Mas que então fartará a tua felicidade, se sempre
estás à contrariar minhas idéias?
Nada, nunca estarei satisfeito, aliás, sou como um
saco sem fundos, quanto mais coisas me dizes menos colocarei fé naquilo que é
dito.
Isto é, absolutamente, um verdadeiro opróbio! Ou...
Quem será o insano?
Não venhas tú novamente com teus desaforos, o fato é
perfeitamente explicável: vejas tu que acaso temos: no pensamento haverão lutas
perpétuas na busca de um consenso absoluto de realidade, consenso este que
jamais será atingido, pois o sujeito que busca entender a realidade está em
constante transformação. Assim, passa-se que o pensamento dialético digladia-se
infinitamente na busca da verdade.
E onde está esta verdade?
Qual verdade?
Ora, a verdade do mundo.
Não está nos teus bolsos?
Deixa eu ver. – Breve instante de silencia mental
- Não, não está.
E no outro?
Deixa eu ver. – Outra pausa no pensamento – Também
não.
Condúi-se daí que não está com você, se não tens a
verdade ela está fora de tí
No mundo?
Bem, se você imaginar que a verdade do mundo, como
diz o nome é pertencente ao mundo é esta a resposta, mas julgo que sejas um
tanto tola esta sua colocação, pois não busca a verdade do mundo senão a
verdade da realidade.
Humm?
Falo com uma criança de quantos meses? – Muitas
risadas e gargalhadas, pois o pensamento não pode se conter – A realidade é
algo mais abrangente que o mundo, e que o próprio universo, pois constitui a
divagação de sensos perceptivos diferenciados do que é conhecido.
Neste âmbito posso concordar, e proponho um desafio.
– Disse, mesmo sem entender, mas fazendo-se de esperto, justamente para não
deixar muito tempo para descobrir-se sua total ignorância no que fora dito
Alegro-me finalmente, um desafio me parece algo
instigante.
Disse antes nunca alegrar-se ou algo similar...
Err... Força de expressão, na verdade nem me alegrei
muito, fiquei digamos: um pouco extasiado
Compreensível.
E o desafio?
Que desafio?
Ora bolas... Aquele que acabaste de dizer que irias
propor.
A sim, quase me havia esquecido: Um grande coelho de
bronze, sim, tão grande deixando grandes edifícios pequenos, uma bela
escultura, na qual estão muitas corujas soturnas prostradas, numa noite gélida
e escura, notam-se apenas os centenares olhos de cá para lá, vigiando todos os
cantos de uma praça. Decifra?
Me parece um tanto banal esta sua colocação,
certamente julgaste algo me entreter com tuas histórias estapafúrdias?
Não estou aqui para entreter, senão para desafiar.
Sei disto, fiz esta jogada a ver se percebias meu
blefe.
Não pasmes diante da dificuldade, apenas digas tua
interpretação.
Há! Então era para interpretas?
Supostamente.
Nas cidades de hoje me parece faltar um punhado de
arte, por isto está o coelho gigante, que simboliza um animal bastante
gracioso, o que traz certa infantilidade na conotação geral de teu enigma.
assim deve ser a vida: tendo arte e alegria.
E as corujas? Acaso olvidaste?
Não, por suposto que não amigo meu.
Acaso temos nós toda esta intimidade?
Não somos pensamentos do mesmo cérebro?
Somos, somos sim, mas isto não quer dizer que
estejamos assim tão afeitos, por favor, eu lhe peço gentilmente: mantenhas
certa distância, para que apenas confabulemos aprazivamente.
A última coisa que pudera eu pensar é criar atrito,
atrito jamais, mas sim contravenções e contraposições, se assim não fosse
estaria morto o próprio ato de pensar.
Bem, que assim seja, responda agora o resto do
enigma. – Falou, ou pensou? O pensamento com impetuosidade.
Bem, as corujas, s corujas... São... Sim: As corujas
são seres noturnos, e representam a magia e beleza noturna, compondo com a
estátua e a noite uma imagem tétrica e pitoresca, inesquecível, veja que este é
um animal majestosamente trajado, não deixando de concorrer com os gatos mais
belos que possam existir, seus olhos estão acesos porque olha à noite.
Algo mais?
Não. Isto só já não basta?
Claro, tenhamos bom senso, tuas ponderações
atingiram interessante patamar de discussão, ainda que não tenhas divagado
sobre vêem os olhos.
Mas isto é evidente. Oras...
Não tão evidente quanto parece.
É sim
Não, não é! Os olhos não vêem a cidade que se depara
diante de si, senão o universo por completo, com estrelas, nebulosas
iridescentes, sóis incandescentes e galáxias por completo. Isto é o que vêem os
olhos das corujas, com todo seu esplendor e poder.
Absolutamente, esta parte não pude concluir.
Há coisas que não possuem lógica coerente, ainda que
assim seja elas se efetivam e se fazem presentes.
Exausto,
após finalizá-la, o artista fica
extático diante de sua obra. Embasbacado por sua criação haver fugido em
tamanha proporção de suas intenções e talvez até de seus consentimentos. A
ilusão de todo artista é por certo criar algo que seja maior que si mesmo,
usufruir de inspirações profundas e fugazes, cantar ao sons de sinos, com notas
que se mesclam em sinfonias inimagináveis. Voar num mundo de cores da aquarela
que se tornam tão vivas que com ele e com seus pensamentos movimentam-se numa
infinita ciranda da aquarela. O sonho de todo artista é voar com sua arte a
céus desconhecidos, ver estrelas, galáxias, luas, corujas, estátuas, mares até
então desconhecidos, para que depois em tudo isto, tendo usado sua vontade de
criar e haver seguido o caminho da criação deleite na margem de seu coração as
lágrimas de mares já nadados, de obras já realizadas.
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