Friday, November 1, 2024

21 - A visão de Izaquiel o bêbado

 

Vigésimo primeiro conto: A visão de Izaquiel, o bêbedo

 

-             Sentimentos fraternos, a paz derradeira irá provir de um mártir, eu vejo, eu vejo... Está escrito na face do destino, não há modos de apagar. – Disse um bêbado chamado Izaquiel na rua enquanto era assaltado por um visão angelical de dois arcanjos celestes que traziam um uma harpa que ressoava majestosamente em suas mãos, o outro uma trombeta de sonoridade extasiante.

-             Quê dizes homem? Acaso estás tão desnorteado que não tens conciência de tua situação? – Disse Marcondes abismado com as palavras extraordinarias de seu comparça,Marcondes era um homem gordo e atarracado, quase sempre vestido com um paletó verde e uma camisa beje, o que lhe conferia uma harmonia destoante de cores antagonistas, neste momento inusitadamente estava em plena sobriedade, costumeiramente acompanhava Izaquiel em muitas de suas aventuras, assim como era Sancho Pança para Don Quixote de la Mancha.

-             Não falo de min, falo da verdade, pois já há muito não me preocupo comigo, o que me importa? Não me deixaram nada, por isto só me preocupo com os outros, com a verdade do mundo. – Proferiu Izaquiel, apontando com mesma mão com a qual segurava a garrafa à um dos cantos da rua, como se a verdade do mundo estivesse ali mesmo e fosse tão palpável quanto a garrafa,

-             Vai dormir, já se faz tarde. – Costumeiramente, isto era o que Sancho, quer dizer, Marcondes sempre dizia quando queria indicar que o outro soltava demasiadas asneiras e devia calar-se o quanto antes.

-             Dormir? Não, não posso ir dormir, o mundo precisa de min, pois é chegado o momento em que impávidas andorinhas marcharão rumo ao infinito, todos os animais irão junto e até as águas do mundo evaporarão para sempre.

-             E quê dia será este? homem de Deus... O dia em que parar de beber? – Disse o outro com sarcásticas gargalhadas, lembrando-se neste exato momento as tantas garrafas esvaziadas naquela mesma noite.

-             Está próximo. Vejo a face do destino. – Izaquiel, ao mesmo tempo em que caminhava olhava para o lado, com uma feição estática de dar pavor a qualquer pessoa normal, Marcondes só não se apavorava porque não era uma pessoa normal. Suas pupilas estavam tão fixas que a figura de Izaquiel, quando contemplada parecia mais uma foto que propriamente realidade em movimento. Suas visões eram cada vez mais abrangentes, centenares de arcanjos desciam dos negros céus noturnos, seus olhos estáticos até então se esbugalharam, num fenômeno fantasmagórico.

-             E o destino lá é alguém para ter face? – Disse o outro “encucado”

-             Acaso não sabes o que é uma metáfora? – Explicou pacientemente o bêbedo

-             Estas coisas de previsão do tempo são besteiras que inventam, sabe-se que é impossível saber as coisas antes que aconteçam. Vês como a imaginação do homem é fértil. – Disse o Marcondes num surto explicativo automático, com os olhos fixos no chão, chutando alguns pedriscos graúdos que se deparavam em algumas fissuras oblícuas da calçada.

-             Como você é difícil Marcondes! – Reclamou obstinadamente em um tom de voz pouco mais alto e incisivo Izaquiel, crendo insuportável o fato de que o outro não lhe entendia os termos. -  Um conceito tão simples e você têm tanta dificuldade de assimilar, não posso perder tempo explicando detalhes à você.

-             Quê é então metáfora?

-             É uma força de expressão?

-             Hãn? – Perguntou Marcondes totalmente desnorteado com a explicação fornecida, que segundo seu critério pessoal ficara extremamente limitada

-             É quando alguém quer dizer uma coisa, só que fala outra no lugar para facilitar o entendimento.

-             Claro, claro... Algo tão simples... Como não pudera eu imaginar isto antes?

-             É questão de sabedoria.

      Alguns tropeções depois e muitas palestras deste mesmo caráter chegaram os dois à um termo único, onde o mundo um dia acabaria, e que todos deveriam se preparar para este dia, em que os anjos e arcanjos desceriam em múltiplas falanges do céu, como numa orquestra de harmonia e melodia de indescritível belezas. Este seria o dia do juízo final, onde os justos seriam congratulados com bebidas às favas e os injustos castigados impiedosamente.  Não haviam modos de apagar: a face do destino já estava escrita, a justiça seria o porvir da humanidade, a paz derradeira viria aos bons de coração enquanto os maldosos receberiam o tormento de suas próprias injúrias. Este não só estava próximo como já havia chegado, pois Izaquiel via que os anjos, naquela imensa orquestra o levavam embora, ao céu. E tendo ele na terra esperado seu quinhão de felicidade, tendo recebido somente amarguras no céu teve motivos de se alegrar, não pela bebida que esperava receber às favas, nem pela companhia que impertinente continuou a mesma, mas sim pela derradeira paz que conforme proscrita se fizera verdade. Izaquiel, o infortunado era um homem de Deus.

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