Décimo quinto conto:
Para cada casca um novo conto
Frederico
caminhava com um olhar turvo, não estava onde parecia estar, sua mente
perpassava por lugares distantes enquanto prosseguia com passos incertos pela
noite turva e funâmbula. Uma sensação de pavor apoderou-se dele quando um
assaltante tentou esfaqueá-lo pegando-o totalmente desprevenido, no entanto foi
em vão, pois apenas o feriu levemente. Não teve receio e jogando sua carteira
ao sujeito saiu de seu poderio.
Não ficou
inflamado com a ocasião, tudo o que à ele pudesse fazer um mal aparente
momentaneamente não lhe influenciava à longo prazo, mesmo que ficasse
momentaneamente abatido. Fato é que mesmo que por um momento ficou espavorido,
e isto abateu-lhe os pensamentos, já que tinha recordações familiares, há algum
tempo pensava em seus pais e irmão, dando razão à todos quando diziam que suas
aulas de economia deveriam ser adiados para que fizesse um estágio na Alemanha,
com o colega bastante próximo que mantinha relações comerciais com um de seus
primos. Era mês de maio, mês em que Frederico ficava atulhado de deveres, tanto
no serviço quanto na empresa.
É certo que o
assalto repentino fez com que esquecesse estes pensamentos e se desse conta que
estava num escuro beco. Ora essas! Como havia ele caminhado à tal lugar, tão
assombroso quanto repelente? Na tentativa de encontrar uma saída que análoga à
que tivesse tomado o sujeito violento pulou uma pequena amurada, numa
semi-obscuridade e saiu numa outra rua, tão escura e estreita quanto aquele
outro lugar. Estaria salvo? Quê poderia fazer?
Ó sensação
estranha de insegurança. Quê desalento o imprevisto! Quê pérfida surpresa!
Blasfemou contra a própria sorte com injúrias das mais diversas, quê trouxera o
destino, à ele, que mesmo sem esperar tal derrocada teve de engolir este fel.
Um opróbrio que Frederico teve de passar, pois quem caminha a passos incertos
está sujeito às novidades: sejam elas benfazejas ou desnecessárias. Sendo
novidades estão sendo e devem ser vivenciadas, pois tudo o que é deve ser
transposto e vivenciado, o que não é não pode ser vivido.
Um fato que me
deixou relativamente surpreso é que Frederico ficou menos preocupado com o
ferimento, que sangrava abundantemente, que com o desvio de seus pensamentos,
por isto, fez esforços no sentido de retornar à sua linha de pensamentos
anterior, com empresas, estudos, relações familiares e investimentos.
De maneira
imprevista o chão sob seus pés desabou, desfragmentando-se como argila que se
quebra, dentre as rachaduras produzidas surgiam brilhos dos mais variados
matizes, caiu num fosso tão luminoso que acreditou estar louco, espavoriu-se,
no entanto ao seu lado estava o mesmo ladrão que minutos antes havia lhe
assaltado, tão assustado quanto ele.
Caíram os dois
juntos gritando desesperadamente, não se sabe se por medo ou falta de que
dialogar. O fim desta drástica queda era todavia mais estranho, pois tudo
finalizava numa cama elástica, que absorveu o impacto de maneira eficaz e
patética ao mesmo tempo, já que a cada salto tentavam inutilmente se acomodar à
uma nova situação, não esperando que a falta de técnica fosse preponderante
para um bom controle de movimento. Após a estapafúrdia chegada à um novo
ambiente os dois apresentaram-se de maneira extremamente inócua, nem mesmo eu
esperaria uma atitude de tal envergadura.
-
Boa noite, desculpe, mas meu nome é Tarcilio.
-
Claro, muito boa noite, sou Frederico, muito estranho
este buraco em que caímos, ao menos até ontem não me havia dado conta de sua
existência. – Disse formalmente enquanto levantava-se pateticamente com uma mão
no abdômen segurando a ferida e a outra apoiando na cama elástica.
-
Efetivamente meu caro, nem mesmo eu que toda noite ando
por estas bandas assaltando os palhaços que ousam se aventurar de maneira
anormal vagando pela noite de maneira absurdamente inútil, não me interprete
mal por favor, mesmo que você faça parte deste grupo... A verdade no entanto é
que nem mesmo eu pudera tomar conhecimento deste precipício, talvez seja coisa
da prefeitura... sabe como é que é... ficam sempre dizendo que concertam os
buracos das ruas mas na verdade acabam por fazer mais ainda. Quê petulância...
– Dizia o ladrão com escárnio no olhar, falar sobre política pareceu trazer-lhe
amargas recordações amargas e inconvenientes. – Uma falta de respeito
devidamente.
-
Veja bem meu comparsa, desculpa, mas me vejo obrigado a
chamar de comparsa porque nos deparamos na mesma situação inesperada, mas não
julgo que isto possa ser resultado de qualquer erro da prefeitura, mais seria
uma coisa de circo, com tantas luzes e mais este trampolim acrobático mais
provável seria condizente que um circo estivesse sendo implantado no metrô.
-
É, sou obrigado a admitir que suas ponderações são
bastante lógicas, não obstante, tendo em mente que sou um sujeito ignorante,
deseducado e absolutamente extremista seria notável conduirmos que não sou
muito capaz de ponderações complexas como pensar em circos subterrâneos, ainda
mais que isto seria algo tão novo em minhas percepções de realidade que não
poderia admitir tal circunstância.
-
Vejo, Tarcilio que mesmo a pesar de sua absoluta
ignorância, você têm um tom deveras cordial, quê poderia explicar isto?
-
A única coisa que vejo capaz de explicar tal façanha
retórica da minha parte é a idéia de que poderíamos não ser pessoas vivas de
verdade, com direito de liberdade, e com a capacidade criativa, mas sim ser
personagens de um conto, e alguém pudesse estar manipulando nosso linguajar. De
modo que este alguém seria o escritor.
-
Quê genial, veja que há o fato de que se tuas idéias
porventura se assemelhando com as minhas dariam motivos a desconfiarmos haver
uma mente pensante e não duas, assim diríamos que o inconsciente coletivo seria
o manipulador dos fantoches do mundo.
-
Há – Gritou Tarcílio, como descobrindo um segredo
ultrasecreto. – Então eu não sou um ladrão, sou apenas uma parte necessária ao
teatro da vida, pois sem os seres malévolos e perversos não haveria trama.
-
É também bastante racional admitir esta conclusão,
mesmo que com ela tenhamos que incluir o fato de que o mal é parte necessária
na vida, pois a vida é um “script” e deve inserir todos os tipos de elementos
possíveis em sua constituição.
-
Desculpa por ter te ferido.
-
Não foi nada... – Disse Frederico, tentando disfarçar
uma dor, que neste momento se tornara aguda.
-
Eu sei... É que de repente pode até ter sido um pouco
desagradável a facada, na verdade eu queria te matar para pegar todo o
dinheiro, mas pegou só de raspão, aí você me jogou a carteira e eu fiquei
satisfeito. Mas o fato é que o mal é aparente, pois sem isto não haveria trama.
-
E o escritor?
-
Quê escritor? – Retornou o bandido.
-
Ora estas, o que nos escreve.
-
Simplesmente é ele quem faz a trama.
-
E acha que a ele interessam os acontecimentos
específicos da trama, quando na verdade sabe o fim último? – Perguntou
Frederico ao ladrão com um dos sobrolhos levantado, num ar de investigação.
-
Será que ele sabe o final?
-
É... – Conduiu quase aterrorizado com o pensamento
incerto Frederico. – Talvez nem ele saiba o final desta estória, mas sabe você
que todo escritor que se dê ao luxo de escrever algo prestável deve ao menos
fazer um breve esboço antecedente dos acontecimentos principais...
-
Isto é, mais ainda há um perigo: se acaso lapsos de uma
criatividade inesperada e forte invadires a produção literária estamos sujeitos
à um futuro tão incerto quanto o do conto escrito, pois por mais lastimável que
possa parecer nós somos o próprio conto.
-
Isto, meu senhor, me parece mais cruel que a própria
facada. No entanto algo que me assusta ainda mais que uma possível criatividade
incontrolável seria o fato de que nós não seriamos reais se fôssemos um conto.
-
Não somos nós, somos ele. – Concluiu perversamente o
perverso ladrão. – Mas esta filosofia devaneante, mesmo que seja interessante,
profunda deve-nos trazer algo de útil ao pragmatismo mundano, quê dizer disto?
-
Olha aqui Tarcilio – Falou veementemente Frederico,
gesticulando com as mãos conforme falava. – Um fato que podemos concluir com o
desenvolvimento de uma dialética filosófica, é que no mínimo, no decorrer de
novas descobertas devemos mudar nossas atitudes perante a vida. Você poderia
descobrir a inutilidade de suas ações, já que quem age não é propriamente você,
mas sim o autor através de você, eu ainda proponho uma revolta contra isto.
-
Em troca de quê? De uma liberdade impossível?
-
Não! Veja que se você fizer exatamente o que está fora
de sua essência não irá agradar o escritor, pois fará com que a história saia
de seus eixos originais. Não seria isto uma espécie de liberdade? E quê pode
ser mais pragmático que a conquista do próprio “eu”?
-
É, hei de convir, que novamente suas ponderações fazem
emergir em meu espírito um novo pensar, com isto um novo agir: Estou decidido:
a partir de agora não serei mais um pervertido, mas sim um homem de boas
intenções, ajudarei a todos que se sintam oprimidos, pois é esta a última coisa
que possa imaginar o escritor.
-
Sim! Faça isto, e terá ao menos uma liberdade aparente.
– Falou emotivamente Frederico.
-
Não pode ser... – Questionou como se deparando com
outro problema o antigo ladrão direcionando um olhar terrificante ao famigerado
filósofo e estudante de economia.
-
Quê?
-
Não pode ser!
-
O quê não pode ser?
-
Se eu, por ter sido mal, devo me tornar bom para
contrariar o autor tu que eras bom deverás tornar-te mal pelo mesmo motivo...
-
Bem, neste caso sou obrigado a concluir que tudo
estaria como antes, pois haveria o mesmo equilíbrio entre o bem e o mal,
concluiríamos também que o que importa não é quem interpreta, mas sim o
personagem interpretado, aliás: nós que interpretamos não somos nem uma coisa
nem outra, mas sim uma linha em branco que pode nos dar características
peculiares.
-
Não pode ser... – Disse Tarcílio colocando as dias mãos
no rosto já quase se esbaldando em lágrimas abundantes numa efusiva convulsão
espiritual. – Isto quer dizer que somos apenas linhas em branco sem
características que nos distinguam uns dos outros.
-
Eu diria ainda que não somente somos linhas em branco
como não somos, quem têm a vantagem de poder ser alguma coisa é apenas o
bendito escritor. Se por um acaso resolver eu escrever um conto o conto não
será absolutamente vivo, mas sim eu, então se acaso este próprio escritor
estiver sendo escrito e não for uma realidade? – Disse num surto espontâneo de
inteligência não de Frederico mas minha.
-
Neste caso seriamos a história da história e
recairíamos numa filosofia existencial da cebola. – Concluiu metaforicamente
não o antigo ladrão, mas eu mesmo que sou o próprio autor, e que
convenientemente e medonhamente desconfio, assim como o leitor, que haja
qualquer outro autor que esteja delineando minhas vivências e as transformando
num conto.
-
Exatamente. Viva a cebola! Estamos perdidos num vasto
mundo de infinitas repetições. O que estamos fazendo é descascar esta cebola ao
menos para conhecer algumas possíveis partes dela. – Disse eu, já que isto é um
monólogo e não uma conversa à dois, o fato é que como o processo do
desenvolvimento de raciocínios lógicos se dá através de antagonismos fui
obrigado a inserir ao menos dois personagens nesta história, podendo ainda
considerar eu mesmo como meu próprio personagem, que é invisível no campo dos sentidos
aos outros dois, pertinentemente não sou invisível no campo da lógica.
Assim está
posta a filosofia da cebola como uma coisa bastante simples, mas que têm por
certo não somente um fundo metafísico e uma discussão bastante interessante à
respeito da vida, com uma aplicabilidade às verdades práticas e vivências do
mundo, não os asseguro que vocês leitores não estejam neste momento sendo lidos
por outros como um conto, e que estes outros estejam sendo lidos por outros
ainda. Numa sucessão que seja tão apraziva quanto seja a vontade daquele que
pensa. Aliás meus olhos já estão ardendo de tanto descascar cebola, devo agora
deixa-la para entrar com os tomates.
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