Thursday, October 31, 2024

16 - O homem que decidiu olhar à sua estante de livros

 

Décimo sexto conto: O homem que decidiu olhar à sua estante de livros:

 

     Em meio às brumas, à obscuridade um espírito perturbado recalcitra à respeito de suas questões mais profundas, andando vertiginosamente de um lado à outro, braços atrás do corpo com as mão unidas em atitude preocupada, o cenho franzido provocando comissuras horizontais em sua testa. Era alto da noite, não obstante, para a mente deste senhor não havia transcurso linear do tempo, estava efetivamente perdido em devaneios ora de característica letárgica deixando-o leve e sutil como em uma valsa, ora enfáticos e veementes, no entanto sempre incautos. Julgava este senhor cujo nome é Ânrer, que até as lembranças pareciam lhe assolar de tal modo, que de tão precisas que eram, havia extraordinária vivacidade nelas, acreditando piamente por isto que ao permearem sua mente criavam-se a si mesmas, andavam por onde bem quisessem, estavam alí em sua mente, ainda que não fossem dele tamanha era a desenvoltura e liberdade de suas próprias lembranças. Seu rosto assumia diferentes feições, ora de serenidade e leveza, ora pesaroso e triste baixava a cabeça ao solo e caminhava mais uma pouco.

      A sala era bem decorada, no entanto tudo obumbrado pela noite impenetrável pelas pupilas, um sofá de couro escuro de disposava numa das paredes diante de magnífico quadro com paisagem campestre verdadeiramente monótona em cores, na mesa volumes de clássicos dispostos em três montes, um jornal semi-aberto ao centro da mesa e muitas folhas de papel em branco ao lado da mesa de mogno.

      Minha mente percrusta campos incompreensíveis. Não entendo que é a memória: se é um passado consumado ou uma vivência diferente daquilo que já há muito se foi. É notável minha emotividade com coisas que há muito já se desvaneceram. Ó lembranças da minha vida, como são profícuas, ainda que sejam solenemente tristes, são o vínculo que me faz social! Águas passadas dum oceano, que evaporam-se no ar da minha consciência, logo caindo como chuva no brilho dos meus olhos, esta escuridão muito me agrada, tranquilisa e faz com que recorde com mais intensidade daqueles a quem estimo.

     De fato o amor corresponde ao sentimento mais nobre que se possa imaginar, nós devemos nutrir cada momento com o êxtase da novidade, a beleza de assustar-se constantemente com o mundo é a procedência do bem viver,  as parcas noções do destino se desvanecem diante do encontro do amor fraternal, não há preocupações que possam coexistir com preocupações mesquinhas, pragmáticas, fúteis, supérfluas e inúteis. A alma anseia por sondar sendas tão mais profundas quanto é o local mais profundo que se possa imaginar deste planeta, ali onde correm as seivas salutares e incandescentes do espírito Gaia, sim é isto, no meu sangue corre minha própria alma, é por isto que quando me recordo bate mais forte meu coração, claro! Como não havia de imaginar à isto?

      As lembranças mais longínquas tornam-se vivas como o momento em que por elas estava passando. Existe algo aqui! Isto eu sinto não de maneira ingênua e infantil, mas utilizando minha lógica, os parâmetros racionais de que a vida me dotou, há mistérios do consciente mais profundo do homem difíceis de se atingir, mas logo, quando atingimos um triste êxtase se subleva ao coração, trazendo tudo o que até então era pecaminosamente oprimido pela mentira, falsidade e vã vivência à margem do entendimento num ímpeto quase que explosivo. São os insights que chegam à min como se nunca tivessem feito parte de min, quando na verdade eles são eu, a pequenez de minhas possibilidades, de fato, não me permitiram chegar ao entendimento de minha consciência em toda sua completude. É um terror, é sim, como é que esta sociedade se satisfaz com suas vidas mesquinhas? Como podem ser tão inúteis? Ignorantes seres, que com suas bestialidades se preocupam todos os dias, é pois mais fácil viver de prazeres fáceis e descartáveis que sofrer bastante antes de cair diante de si mesmo e dizer: - Ó vida, agora te compreendo! Agora melhor te entendo! Vejo que fala-me pelo caminho mais árduo...

      Ânrer ficara em certo ponto de sua solitária discussão com sua consciência estático, olhando à obscuridade, certo ângulo daquele escritorio, donde se encontrava estante de livros, por momentos pensou visualizar um compêndio sobre a natureza humana, de capa vermelho viva, que lera já a algum tempo. Talvez tivesse sido um lapso de imaginação d sua consciência tal era o alcance da escuridão, que se infundia naquele local como um mar de mistérios imaginosos. Seus olhos estavam estáticos, e mais abertos do que fica em geral os olhos de uma pessoa de sã consciência, seus braços cairam ao lado do corpo como que perturbado per pensamentos perdidos, seus labios pareceram balbuciar algo, disse que pareceram pois não foi possivel divisar os labios e parte duma estátua de prata que se prostrava por trás de sua silhueta. Estava embasbacado, com postura pasma e idiota, no entanto os olhos prosseguiam fitando as névoas obumbradas da noite, nào sabia neste momento se via com os olhos ou com a imaginação pois à medida em que sua imaginação ganhava força seus ímpetos de loucura pareciam tomar maior sentido, e suas lembranças saltavam de sua mente como espectros evanescentes de formas semi-ocultas no mar de nada que é a escuridão, não obstante isto que acabamos de definir como mar de nada tornou-se colorido, colorido e rico, tão rico na fértil e emotiva imaginação de ânrer que logo ele estava transportado à sua consciência, e via tudo o que imaginava como realíssimo, infindáveis pontinhos coloridos pareciam querer jogar com ele, seus olhos chegaram a arder, pois não piscava, de tal forma permaneceu nesta postura que uma lágrima por sua face triste e velha resvalou, como um rio de cristalina água perpassa uma noite gélida  de desconhecida floresta. Através da finestra entrava de forma mística uma luz de lua tão forte quanto a loucura de Ânrer.

      Neste preciso momento nada pensava senão em paisagens desconhecidas, através de raciocinio lento e irracional, de modo que poderiam fundir-se em uma só idéias antagonistas, os conceitos não mais eram importantes, mas sim a percepção empirica daquela letargia louca, a pouca visão que tinha da sala desfragmentava-se, dividindo-se em ondas de cores que ora vinham ora iam, seu corpo estava fraco, muito fraco, tinha uma verdadeira ância de vômito, eis justo o que perpassava em sua mente alucinante e corajosa:

       O bem e o mal, forças contrárias, não, devem ser sim parte de um todo, pois tudo o que existe há de fazer parte dum contexto integral, é isto, tanto  o fogo do sol como a água da terra se fundem em forma de chuva, e caem ao homem, para dizer que fogo e água são um só. Tanto o ar que respiramos como a terra de onde Deus nos tirou são a mesma coisa, pois logo quando respiramos unimos ar e terra. É assim que quando a chuva, trazendo sua mensagem cai no homem sedento de luz, vida, glória e paz fundem-se os quatro elementos do mundo: terra, ar, fogo e água. Homem, ar, sol e água. Este é o homem respirando na chuva, por certo segundo minhas conclusões a única realidade existente, a metafísica do Mundo, só resta saber a metafísica de Deus, mas à quem compete esta descoberta? De quem é esta tormentosa responsabilidade? Hei de descobrir...

      Os pensamentos peregrinavam como grilos saltitantes, enquanto estranha tontura permeava a realidade visual de nosso personagem, no entanto estava tão petrificado dentro de seu próprio espírito, que à esta altura as percepções empíricas não lhe tinham mais quaisquer importâncias, poderia até cair num abismo que não notaria diferença, pois à ele o espírito do questionamento era a única coisa existente, existia dentro de si, e nada mais era interessante, não sendo interessante era inexistente aquilo que o circundava, assim que mergulhou mais fundo, audaciosamente, tinha receio, não! Não era receio, senão um medo desconhecido, provindo de seu exterior, pois ele não tinha medo, jamais teria, pois a vida lhe era bela e ele a aproveitava, na verdade ocorria que tais foram as proporções de seus pensamentos que logo imaginou estar bem, e isto somente lhe bastava, suas pernas estavam doídas, pois não há qualquer pessoa que possa sugerir quanto tempo, ao certo ficara naquela postura, a tentar olhar seu compêndio sobre a vida, que estava não na estante de livros, mas dentro de si mesmo.

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