Thursday, October 31, 2024

12 - O dilema de Felizberto

 

DÉCIMO SEGUNDO CONTO:  O dilema de Felisberto

 

      Felisberto era um funcionário preocupadíssimo com os problemas de sua sociedade, no entanto um dos maiores problemas era o trânsito na cidade de São Paulo, se indignava totalmente com a quantidade de horas que passava dentro daquele cubículo que era seu carro, tentava sempre distrair-se com alguma música, mas depois de poucos minutos  a música parecia estar lhe estourvando a paciência, de modo que nalgumas vezes achava que seu cérebro iria estourar de tanta dor, sim, este era mais um problema que andava em seu encalço . O dia inteiro atulhado e atolado num computador recebendo ordens e mais ordens, de todos os lados, o que lhe trazia afazeres e mais afazeres, sentado o dia inteiro com os nervos sempre à flor da pele, já que seu chefe não contribuía muito nas situações do dia dia, chegava em casa já tarde da noite, tão cansado que nem energia lhe sobrava para conversar pouco mais animado com a esposa. Sobrava para ela receber um monte de reclamações pouco menor que o Monte Everest. Felisberto, um homem de 34 anos, seus cabelos denotavam já duas reentrâncias na testa, talvez produzidas por sua vida atulhada de afazeres e deveres, os olhos castanhos mas com vermelidões horrorosas, que quando unidas com a obscuridade de seus profundos entornos davam-lhe um aspecto assombrado. A comissura dos lábios dificilmente se esticavam para cima, bastante difícil era que fizesse um sorrido, e quando o fazia este surtia com um efeito bastante sínico, de modo que fosse como uma representação bastante mal feita de um esboço de sorriso, assim sempre que assim julgava melhorar a situação acabava por ficar ainda mais inconveniente.

      Este era Felisberto. Felisberto estava triste e não sabia. Aos fins de semana conseguia ludibriar a si mesmo quando jogava futebol com os amigos e tomava uma cervejinha. Era a pelada que salvava a sua vida, era ela que trazia, ao menos por alguns momentos, o vigor da vida a alegria, felicidade, prazer e êxtase da vida. Sentia-se muito melhor naqueles momentos que durante os outros momentos da vida. Entretanto pelo acaso do destino ou da mais pura sorte um dia Felisberto num churrasco falou à um de seus amigos de maneira espontânea e casual, ainda com aquele sorriso cínico e com umas olheiras gigantesca que faziam com que parecesse um monstro aterrador:

-             Sabe Arnaldo... Estava pensando ultimamente que estar aqui tomando esta serveja, e jogando esta pelada maravilhosa é uma coisa fora do comum, algo que sinto um prazer indescritível. Pode este prazer ser chamado de vida?

      Arnaldo era um homem bastante íntegro, e notando que o colega se encontrava num grande dilema tentou ajudar-lhe com algumas proposições:

-             Você está dizendo então que somente prazer nestes momentos?

-             Sim exatamente... Minha vida está um verdadeiro bagaço, as relações com minha esposa não andam nada bem,  e o serviço cada vez mais puxado não me dá margem à um descanso...

-             Sim, entendo, mas veja bem meu amigo: Seria a essência da vida o prazer? Futebol e cerveja são grandes prazeres dos Brasileiros, assim como o samba e as mulatas, mas veja bem que o sofrimento também faz parte integral da vida. É preciso sofrer para viver. – Com esta afirmação deu três goles em sua cerveja e continuou com alacridade. -  Sim, eu diria que o sofrimento é a base da vida, pois o sofromento é um dilema pelo qual passamos, e o dilema é um problema que incita a mudança, a mudança é movimento, logo a essência da vida é o movimento, portanto meu caro Felisberto o sofrimento é movimento.

-             É, acho que entendi. – Disse com simplicidade Felisberto enquanto picava uma calabresa com cebola.  – Então quer dizer que todos os dias que sofro durante a semana são mais importantes que os dias que tenho prazer jogando futebol e tomando minha bela cerveja?

-             Isso! – Gritou o amigo, empolgado com o fato de que seu amigo havia captado por inteiro sua idéia. – É magnífica sua capacidade de entendimento. Ainda digo mais: Os momentos que passamos por prazeres como este são um entorpecimento que faz com que fujamos do sofrimento.

-             O quê? – Berrou Felisberto de maneira escandalosa, sem se conter, inclusive este foi o momento em que caiu da cadeira, aquelas cadeiras de bar, sempre eram perigosas para cair dizia ele depois deste dia. – Você quer então dizer que deve-se somente sofrer, sem ter ao menos os poucos momentos de devaneio e prazer?

-             Não, absolutamente, isto não. O fato é que a importância em si não está no sofrer mas sim no mudar, e o que causa mudança nos seres humanos é o sofrimento, aquele que muito sofre devido à mesma causa é porque não mudou, mudar exige uma atitude, uma força, uma vontade.

-             Acho então que vou mudar, mas não sei como...

-             Faça como eu! – Exclamou vivazmente Arnaldo. – Além de jogar futebol  e tomar a cerveja aos fins de semana aos dias de semana eu sempre encontro tempo para dar uma escapadinha no horário do almoço e correr um pouco lá no parque, é para min um momento d indescritível paz, depois que comecei dei outro sentido para vida em geral. Tudo parece mudar, estou bem mais magro, mas ainda tenho que emagrescer pouco mais, minhas idéias concatenam com maior precisão e não estou tão lerdo como era antes para subir escadas. Meu vigor sexual melhorou bastante, inclusive é extraordinariamente eficaz neste sentido a corrida.

-             Mas você não cansa de correr todos os dias?

-             Não, não... Veja bem Felisberto: o treinamento de corrida é super variado, têm os intervalados, ritmo, morro, fartleck, longão e por aí vai. E nosso organismo vai se adaptando gradualmente ao esforço, de modo que com a super-compensação nós ficamos melhor preparados para um novo treino, ao contrário de cansar a gente renova as energias.

-             Agora acho que entendi. – Falou o outro resignado com as explicações.

-             Como sabe tenho uma belíssima coleção de medalhas lá em casa, o que me dá uma grande moral com o pessoal do serviço, eles nem sequer acreditam que consegui completar uma maratona este ano, uma prova impressionante de seus impossíveis 42 quilômetros, fiquei muito emocionado quando cheguei... – Fez um gesto cômico com a mão, jogando-a com vigor para o ombro do amigo, algo que lhe era bastante peculiar. – É, isto na verdade é o que todo dizem, e que no quilômetro 30 têm o paredão.

-             Você correu 42 quilômetros? Está brincando comigo?

-             Não, não. É verdade, corri sim. E ainda consegui cumprir com minha meta, que era fazer a prova para um tempo de 3 horas e 50 minutos, foi fantástico quando cheguei... Ver a torcida batendo palmas... E toda aquela gente correndo para a chegada... Todos por certo bastante emocionados. Foi muito legal, nem consigo descrever direito, sabe? É algo que mexe com a gente.

-             Acho que eu nunca conseguiria. – Falou com desalento Felisberto.

-             Quê nada, todo mundo diz que é impossível, é difícil mais não impossível. Tudo se resolve com treino e dedicação. Quando nos dedicamos à alguma coisa específica mudamos nossas vidas, pois a cada dia cumprimos uma pequena meta, para um dia chegar na meta maior que é a maratona.

-             É? Acho que este é meu problema... Ando meio sem metas na minha vida... É só trabalhar e trabalhar, ganhar o sustento da família e depois trabalhar mais, se eu não dedicar um mínimo tempo em alguma meta um pouco mais elevada que isto acho que vou morrer de desgosto.

-             Este é em geral... – Disse  Arnaldo dando uns tapas amistosos nas costas do colega. – É em geral o maior problema dos seres humanos, que passam pela vida sem viver, ou melhor: passam pela vida sem correr, porque correr é viver.

-             Isto parece  uma paródia, mas vou confiar em você, pois na situação em que me encontro não tenho nada a perder, vou experimentar correr.

      Uma semana depois de ter proferido esta frase Felisberto começou suas primeiras corridas, eram três vezes por semana, um esforço tremendo que com o passar dos tempos passou à exigir pouco menos, de modo que começou a descobrir o prazer de correr. Sim! O mundo era belo! A natureza era exuberante, os perfumes agradáveis, a terra era fofa, a chuva era refrescante, os ventos eram revigorantes, as plantas eram exóticas, e as pessoas... as pessoas... as pessoas eram humanas! Sim era isto que ele havia descoberto. Tudo estava dentro de uma simplicidade e singeleza tão grande que Felisberto não sabia como não pudera descobrir tudo isto antes.

      Então finalmente chegou, depois de três anos de graduais objetivos atingidos, como provas de 6, 10, 15 e 21 quilômetros, todas as metas logradas com muita alegria, sentia que sua vida estava mais viva, sorria mais, estava sempre mais disposto, as coisas lhe pareciam mais belas, era uma pessoa mais positiva, mais otimista. Chegou ao dia da maratona, finalmente iria fazer aquela prova de que tanto lhe falavam os corredores seus colegas de treino. A temida prova de seus 42 quilômetros e 195 metros, finalmente disse ele enquanto uma ansiedade lhe inundava a alma antes da largada. Então correu. Correu bastante, correu muito e continuou correndo até que viu depois de muito tempo a linha de chegada, seus pés doíam, suas pernas não respondiam com exatidão, mas sua alma vibrava com tanta intensidade que não pode conter muitas lágrimas, que esbaldavam de seu rosto, se sentiu como nunca havia se sentido em sua vida pois um sentido de paz lhe preencheu de tal forma que tudo em sua vida pareceu fazer sentido. Finalmente ao chegar  teve o descanso merecido daqueles poucos que são verdadeiros heróis, heróis não só da corrida como também da vida!

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