DÉCIMO SEGUNDO
CONTO: O dilema de Felisberto
Felisberto era um funcionário preocupadíssimo com os problemas de sua
sociedade, no entanto um dos maiores problemas era o trânsito na cidade de São
Paulo, se indignava totalmente com a quantidade de horas que passava dentro
daquele cubículo que era seu carro, tentava sempre distrair-se com alguma
música, mas depois de poucos minutos a
música parecia estar lhe estourvando a paciência, de modo que nalgumas vezes
achava que seu cérebro iria estourar de tanta dor, sim, este era mais um
problema que andava em seu encalço . O dia inteiro atulhado e atolado num
computador recebendo ordens e mais ordens, de todos os lados, o que lhe trazia
afazeres e mais afazeres, sentado o dia inteiro com os nervos sempre à flor da
pele, já que seu chefe não contribuía muito nas situações do dia dia, chegava
em casa já tarde da noite, tão cansado que nem energia lhe sobrava para
conversar pouco mais animado com a esposa. Sobrava para ela receber um monte de
reclamações pouco menor que o Monte Everest. Felisberto, um homem de 34 anos,
seus cabelos denotavam já duas reentrâncias na testa, talvez produzidas por sua
vida atulhada de afazeres e deveres, os olhos castanhos mas com vermelidões
horrorosas, que quando unidas com a obscuridade de seus profundos entornos
davam-lhe um aspecto assombrado. A comissura dos lábios dificilmente se
esticavam para cima, bastante difícil era que fizesse um sorrido, e quando o
fazia este surtia com um efeito bastante sínico, de modo que fosse como uma
representação bastante mal feita de um esboço de sorriso, assim sempre que
assim julgava melhorar a situação acabava por ficar ainda mais inconveniente.
Este era
Felisberto. Felisberto estava triste e não sabia. Aos fins de semana conseguia
ludibriar a si mesmo quando jogava futebol com os amigos e tomava uma
cervejinha. Era a pelada que salvava a sua vida, era ela que trazia, ao menos
por alguns momentos, o vigor da vida a alegria, felicidade, prazer e êxtase da
vida. Sentia-se muito melhor naqueles momentos que durante os outros momentos
da vida. Entretanto pelo acaso do destino ou da mais pura sorte um dia Felisberto
num churrasco falou à um de seus amigos de maneira espontânea e casual, ainda
com aquele sorriso cínico e com umas olheiras gigantesca que faziam com que
parecesse um monstro aterrador:
-
Sabe Arnaldo... Estava pensando ultimamente que estar aqui tomando esta
serveja, e jogando esta pelada maravilhosa é uma coisa fora do comum, algo que
sinto um prazer indescritível. Pode este prazer ser chamado de vida?
Arnaldo
era um homem bastante íntegro, e notando que o colega se encontrava num grande
dilema tentou ajudar-lhe com algumas proposições:
-
Você está dizendo então que somente prazer nestes momentos?
-
Sim exatamente... Minha vida está um verdadeiro bagaço, as relações com
minha esposa não andam nada bem, e o
serviço cada vez mais puxado não me dá margem à um descanso...
-
Sim, entendo, mas veja bem meu amigo: Seria a essência da vida o
prazer? Futebol e cerveja são grandes prazeres dos Brasileiros, assim como o
samba e as mulatas, mas veja bem que o sofrimento também faz parte integral da
vida. É preciso sofrer para viver. – Com esta afirmação deu três goles em sua
cerveja e continuou com alacridade. -
Sim, eu diria que o sofrimento é a base da vida, pois o sofromento é um
dilema pelo qual passamos, e o dilema é um problema que incita a mudança, a
mudança é movimento, logo a essência da vida é o movimento, portanto meu caro
Felisberto o sofrimento é movimento.
-
É, acho que entendi. – Disse com simplicidade Felisberto enquanto
picava uma calabresa com cebola. – Então
quer dizer que todos os dias que sofro durante a semana são mais importantes
que os dias que tenho prazer jogando futebol e tomando minha bela cerveja?
-
Isso! – Gritou o amigo, empolgado com o fato de que seu amigo havia
captado por inteiro sua idéia. – É magnífica sua capacidade de entendimento.
Ainda digo mais: Os momentos que passamos por prazeres como este são um
entorpecimento que faz com que fujamos do sofrimento.
-
O quê? – Berrou Felisberto de maneira escandalosa, sem se conter,
inclusive este foi o momento em que caiu da cadeira, aquelas cadeiras de bar,
sempre eram perigosas para cair dizia ele depois deste dia. – Você quer então
dizer que deve-se somente sofrer, sem ter ao menos os poucos momentos de
devaneio e prazer?
-
Não, absolutamente, isto não. O fato é que a importância em si não está
no sofrer mas sim no mudar, e o que causa mudança nos seres humanos é o
sofrimento, aquele que muito sofre devido à mesma causa é porque não mudou,
mudar exige uma atitude, uma força, uma vontade.
-
Acho então que vou mudar, mas não sei como...
-
Faça como eu! – Exclamou vivazmente Arnaldo. – Além de jogar
futebol e tomar a cerveja aos fins de
semana aos dias de semana eu sempre encontro tempo para dar uma escapadinha no
horário do almoço e correr um pouco lá no parque, é para min um momento d
indescritível paz, depois que comecei dei outro sentido para vida em geral.
Tudo parece mudar, estou bem mais magro, mas ainda tenho que emagrescer pouco
mais, minhas idéias concatenam com maior precisão e não estou tão lerdo como
era antes para subir escadas. Meu vigor sexual melhorou bastante, inclusive é
extraordinariamente eficaz neste sentido a corrida.
-
Mas você não cansa de correr todos os dias?
-
Não, não... Veja bem Felisberto: o treinamento de corrida é super
variado, têm os intervalados, ritmo, morro, fartleck, longão e por aí vai. E
nosso organismo vai se adaptando gradualmente ao esforço, de modo que com a
super-compensação nós ficamos melhor preparados para um novo treino, ao
contrário de cansar a gente renova as energias.
-
Agora acho que entendi. – Falou o outro resignado com as explicações.
-
Como sabe tenho uma belíssima coleção de medalhas lá em casa, o que me
dá uma grande moral com o pessoal do serviço, eles nem sequer acreditam que
consegui completar uma maratona este ano, uma prova impressionante de seus
impossíveis 42 quilômetros, fiquei muito emocionado quando cheguei... – Fez um
gesto cômico com a mão, jogando-a com vigor para o ombro do amigo, algo que lhe
era bastante peculiar. – É, isto na verdade é o que todo dizem, e que no
quilômetro 30 têm o paredão.
-
Você correu 42 quilômetros? Está brincando comigo?
-
Não, não. É verdade, corri sim. E ainda consegui cumprir com minha
meta, que era fazer a prova para um tempo de 3 horas e 50 minutos, foi
fantástico quando cheguei... Ver a torcida batendo palmas... E toda aquela
gente correndo para a chegada... Todos por certo bastante emocionados. Foi
muito legal, nem consigo descrever direito, sabe? É algo que mexe com a gente.
-
Acho que eu nunca conseguiria. – Falou com desalento Felisberto.
-
Quê nada, todo mundo diz que é impossível, é difícil mais não
impossível. Tudo se resolve com treino e dedicação. Quando nos dedicamos à
alguma coisa específica mudamos nossas vidas, pois a cada dia cumprimos uma
pequena meta, para um dia chegar na meta maior que é a maratona.
-
É? Acho que este é meu problema... Ando meio sem metas na minha vida...
É só trabalhar e trabalhar, ganhar o sustento da família e depois trabalhar
mais, se eu não dedicar um mínimo tempo em alguma meta um pouco mais elevada
que isto acho que vou morrer de desgosto.
-
Este é em geral... – Disse
Arnaldo dando uns tapas amistosos nas costas do colega. – É em geral o
maior problema dos seres humanos, que passam pela vida sem viver, ou melhor:
passam pela vida sem correr, porque correr é viver.
-
Isto parece uma paródia, mas vou
confiar em você, pois na situação em que me encontro não tenho nada a perder,
vou experimentar correr.
Uma
semana depois de ter proferido esta frase Felisberto começou suas primeiras
corridas, eram três vezes por semana, um esforço tremendo que com o passar dos
tempos passou à exigir pouco menos, de modo que começou a descobrir o prazer de
correr. Sim! O mundo era belo! A natureza era exuberante, os perfumes
agradáveis, a terra era fofa, a chuva era refrescante, os ventos eram
revigorantes, as plantas eram exóticas, e as pessoas... as pessoas... as
pessoas eram humanas! Sim era isto que ele havia descoberto. Tudo estava dentro
de uma simplicidade e singeleza tão grande que Felisberto não sabia como não
pudera descobrir tudo isto antes.
Então finalmente chegou, depois de três anos de graduais objetivos
atingidos, como provas de 6, 10, 15 e 21 quilômetros, todas as metas logradas
com muita alegria, sentia que sua vida estava mais viva, sorria mais, estava
sempre mais disposto, as coisas lhe pareciam mais belas, era uma pessoa mais
positiva, mais otimista. Chegou ao dia da maratona, finalmente iria fazer
aquela prova de que tanto lhe falavam os corredores seus colegas de treino. A
temida prova de seus 42 quilômetros e 195 metros, finalmente disse ele enquanto
uma ansiedade lhe inundava a alma antes da largada. Então correu. Correu
bastante, correu muito e continuou correndo até que viu depois de muito tempo a
linha de chegada, seus pés doíam, suas pernas não respondiam com exatidão, mas
sua alma vibrava com tanta intensidade que não pode conter muitas lágrimas, que
esbaldavam de seu rosto, se sentiu como nunca havia se sentido em sua vida pois
um sentido de paz lhe preencheu de tal forma que tudo em sua vida pareceu fazer
sentido. Finalmente ao chegar teve o
descanso merecido daqueles poucos que são verdadeiros heróis, heróis não só da
corrida como também da vida!
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