PRIMEIRO
CONTO – A louca do condado
Os tambores
rufavam com toda a imponência ao mesmo tempo faustoso o rei descia as
escadarias dum magnífico castelo, iluminado por um sol causticante os plebeus
digladiavam-se a ver toda a pompa de seus governantes. Clamorosos ímpetos
insuflaram a ira do rei quando notou que uma dama de honra sentia-se
constrangida por um suposto contratempo.
-
Quê passa com a senhorita?
-
Dentro do âmago de minhas efervescentes indagações tenho muitas
dúvidas.... – Disse ela ao rei, enquanto este acorria pela escadaria à
ajuda-la, no mesmo tempo em que todos os outros abismados contemplavam-nos.
-
Não entendi! Explique-se mais detidamente por favor.
-
Meu caro rei: Há muito tempo, eu como discípula da mais requintada
família da corte fui acometida de loucura, ao menos assim acham muitos daqueles
que travaram relações e conversações comigo, mas nunca julguei isto, neste
mundo não sei como podem acusar uma pessoa tão honesta como eu, jamais roubei
ou estorvei uma pessoa, nunca tive vontades contraditórias, e ainda assim
julgam sem quaisquer circunstâncias que sou desregulada, que simplesmente sou
débil e que não tenho nada de cabível....
-
Não temas! – Afirmou o rei, mesmo temendo ele próprio que fosse ela
feiticeira, bruxa ou que tivesse parte com o demônio. – Farei o que estiver ao
meu alcance a resolucionar este seu caso, agora não posso despender mais de meu
tempo, devo prosseguir à outro reinado, passe bem, e venha ao meu castelo
amanhã mesmo.
-
Claro, meu senhor rei, ficarei aqui, pois acaso tenha o senhor olvidado
vivo no mesmo castelo que tu.
-
Sim, sim... Disto já sabia. – Retrucou o rei completamente sem graça
pelo equívoco, já virando o rosto à um de seus auxiliares, insinuando que este
já deveria há muito haver preparado o cavalo. – Claro que já era ciente deste
fato minha querida, apenas fiz esta paródia, burlesca, satírica, cômica e
engraçada a ver se a senhorita notasse algo de estranho, e se acaso notasse
seria um veemente sinal de que teus pensamentos condiziam com a normalidade. –
Assim se safou com exímia presteza deste erro o rei.
-
Claro, tudo faz sentido. – Disse a donzela extremamente satisfeita, e
já menos estorvada. – Vês? Sou tão normal como qualquer outro...
-
Bem... Se me concedes a permissão devo apressar-me.
Assim o
rei foi resolver seus negócios de magnata, tratavam-se de negócios relativos à
gado, igreja, feno e plantações. As vantagens que ficaram com o suposto outro
negociante foram trocadas por uma valiosa aliança, recurso que resguardaria seu
reino aos impropérios de uma futura e escandalosa guerra entre os reinos
daqueles sítios. Devido ao fato de que o lugarejo não era lá demasiado distante
ocorreu que no mesmo dia, no período da noite estava o rei de volta à seu
suntuoso castelo. Extremamente satisfeito pediu que fosse servido um
magnificente manjar, e foi-se dormir. No outro dia levantou-se de supetão pis
ouvira não um mas muitos estrondos provindos da porta se seu grande e belíssimo
quarto. – Mais que raios acontece neste castelo? Quase não tenho sossego!
Parece mais um inferno que a casa do rei abençoado pelos desígnios de nosso
santíssimo reverendo... – Então o rei disse uma série de impropérios enquanto
vestiu-se enfadado com a ocorrência que curiosamente não havia cessado de
ocorrer.
-
Meu rei, há uma mulher desesperada querendo falar-lhe algo de
importante vigor, diz ela que a questão é de tamanha importância que as coisas
da terra nem os assuntos do céu podem equiparar-se à premente discussão que
visa direcionar-lhe.
-
Mas que desrespeito! – Blasfemou o rei, extremamente indignado com
aquele funcionário, que segundo sua opinião era um vagabundo, ignorante e
ignominioso que não devia nem seu respeito nem sua consideração. – Não notaste
algo de estranho nela? Não percebeu que é uma louca?
-
Desconfiei senhor... – Redargüiu o pobre, notando sim a impetuosidade
do rei que não gostara de nada que ele dissera, e principalmente com o
estrondoso modo como despertara ao digníssimo comandante. – Mas é que ela
falava com tal veracidade que desejava muito falar-lhe, e que inclusive havia
marcado uma reunião com o senhor. Sim, disse que seu nome é Margarida, é por
certo uma pessoa bastante peculiar, uma destas burguesas, não sei se vive em
nosso castelo, mas é fato que deseja com grande urgência falar-lhe.
-
Claro que vive aqui, margarida é uma nobre de grande requinte e
distinção. – Disse o rei, como se sempre, em toda sua vida, soubera disto, já
metendo um dos braços pelo rosto do servo obediente e passando pelo estreito
corredor com o nariz empinado.
O pobre
ajudante ficou para trás, totalmente desfigurado pela discrepância que o rei, a
quem ele muito venerava, o transmitiu. O rei, a passos largos atravessou o
passadiço, não queria mais perder tempo com aquilo, quando então finalmente
chegou no grande salão viu aquela linda donzela sentada numa das belíssimas
ornamentadas cadeiras de ébano compradas à muito tempo de um mercador oriental,
aliás por um preço bastante salgado, mas o rei não se importava com isso já que
quando fez a aquisição deste produto concebeu que o valor artístico era
inconcebível, simplesmente não era possível estipular, mas como não vem isto ao
caso neste momento devemos com rapidez retornar ao assunto nevrálgico deste
conto....
Chegando
então o rei ao salão, olhou ele empertigado à mulher, à margarida, enquanto ela
com um olhar confuso não sabia que dizer, somente proferiu algo quando ele
comentou um bom dia ou algo similar.
-
A luz meu senhor ! Vejo luzes por todos os lados e não consigo me
conter. Quê serão estas coisas? Me parece um túnel ou algo similar.
-
Luzes todos vêem, minha querida Margarida! Há luz no sol, na lua, nas
velas dispostas nos candelabros e nos archotes embebidos em beberagens.
-
Não! São luzes coloridas, pontos luminosos de todas as cores. Sim! É
isto.... Por isto me chamam de louca nesta terra de ímpios. Ó, mas que dor mais
cruel, não terei mesmo apaziguamento. Serás tu que poderás me dizes quê é que
passa comigo?
-
Margarida, por favor – reforçou o rei com boa vontade, recorrendo à
outra daquelas magníficas cadeiras enquanto sentava-se à sua frente. – Não
terás acaso te enganado? Não serão estas luzes como todas as outras? Por uma
suposição creio que a senhora há de haver cometido um cabal engano.
-
Não meu rei. – Disse ela com angustia nas feições. - O mundo não é conduido por suposições.
Devemos apenas nos ater aos fatos reais tais como eles são, as suposições por
certo são imaginações demoníacas que somente os bruxos ousam a colocar em
vigência.
-
Talvez tenha me expressado erradamente. – Falou o rei apenas para
apaziguar seu ânimo e reconciliar o tom da conversa – Disseste-me ontem que
dizem por aí que eres louca?
-
Sim é tudo o que dizem, meu rei. Mas quê é a loucura senão a
divergência de idéias?
O rei
então ficou sem saber o que responder, já que concordou plenamente com sua
colocação, e após um breve momento de silêncio apenas olhou-a de esguelha, já
que havia criado uma distração extremamente inconveniente naquele momento, que
tratava-se justamente de tamborilar com os dedos em sua perna uma canção
bastante interessante, segundo sua opinião. O que deixou Margarida empertigada,
e ela após estes breves momentos não suportando mais tal gesto do rei redargüiu
novamente, com um tom de insistente angústia e melancólica alucinação:
-
Hei de resolver estes enigmas meu rei, se acaso encontrares algo que me
possa servir anseio por tuas palavras.
-
Não tenho, minha cara, no momento muitas elocubrações a dizer, apenas
poderia proferir vagas opiniões à respeito destas suas idéias...
-
Não são idéias. - Interferiu
Margarida bastante contrariada, enquanto pegava um leque negro todo rendado e
de maneira afoita e frenética começava a abanar seu lindo e ingênuo rosto – Não
são idéias meu senhor, as idéias ficam na mente, e o que vejo, vejo com os
olhos é real, é real... São umas luzes bastante peculiares sabe? Parecem com...
Com qualquer coisa que nunca havia visto até então. Uma novidade, sim isto: uma
novidade.
-
Têm certeza de que não são apenas idéias? É que nos últimos tempos eu
andei pensando bastante sobre o assunto e cheguei à conclusão de que as idéias são tão reais quanto qualquer outra
coisa que possamos estar vendo e que teoricamente esteja exteriormente com
relação ao nosso ser, acho mesmo que as idéias não são apenas o que se designa
por criatividade mas sim uma realidade. – Falou o rei com grande conotação,
quando notou que aquele assunto se enquadrava aos seus mais íntimos divagares.
– Pois veja bem: A própria palavra criatividade, é de se conceber que é a
atividade que cria. Pois então aquilo que é criado é real. Se então tenho uma
cria de filhotes de cachorrinho estão eles criados, vivos, belos, bem
alimentados e muito reais. Assim é viável correlacionar que aquilo que criamos,
a criatividade por certo, é uma realidade pois já foi criada.
-
Mas quê quer dizer isto? Acaso o que vejo: estas estranhas luzes e
túneis são reais? – Falou Margarida desacreditando de suas próprias crenças.
-
Claro, claro. – Esclareceu o rei, com ares de superioridade. – Veja bem
minha amiga: a partir do momento em que criamos uma idéia será ela uma parte de
nossa realidade, e por certo algo real, mesmo que seu início tenha se procedido
no campo das idéias e não no campo exterior ao ser.
-
Sabe, meu rei, acho que o senhor explica-me tudo de maneira bastante
singular. – Disse a mulher respeitosa e alegremente. – Mas por vezes tenho
dificuldade em assimilar estas idéias, pois que assim seja! Não quero saber
amiúde dos detalhes, a min me basta saber a verdade, pois esta será somente
uma. Não é?
-
Claro que sim! A realidade há de ser uma e não mais, inclusive
assustei-me diante de tua prodigiosa afirmação: A loucura é apenas a diferença
de idéias, tão verdadeira quanto é a própria vida. Mas no que se refere à estas
diferentes e coloridas luzes diria que, segundo minha teoria é algo que por
certo por ser ou haver sido provinda de sua imaginação criativa, o que pode
também ser chamado de alucinação, entretanto em nosso mundo e em nosso tempo
ainda inexiste esta concepção, por este motivo não posso afirmar tratar-se
disto, o que por certo creria se nossa tecnologia e ciência permitisse, ma como
esta realidade trata-se de um conto ambientado num lugar dos mais longínquos e
num tempo dos mais remotos ainda não estou apto a concluir diagnósticos de tais
prodigalidades ( e nunca estarei, pois o conto se acabará antes que se passem
as 500 gerações necessárias de minha dinastia ). Hilaridades à parte, eu diria por certo que
se não pode ser alucinação ou é realidade externa ou interna, sendo que quando
é interna não deixa de ser externa.
-
Como assim? – Perguntou ingenuamente Margarida pegando um pedaço de pão
de maneira audaz, duma mesa em que estavam dispostos uma série de guloseimas do
café da manhã real.
-
Bem... – Elocubrou o rei, enquanto consentia com a periculosa e
arriscada audácia da mulher em usurpar comida real. – explicar-lhe-ei com a
maior boa vontade, dentro de minhas capacidades é claro.... errr... – Disse ele
fingindo simplicidade e humildade enquanto preparava a garganta com um grunhir
bastante estranho, bastante similar à um cavalo relinchando ou à um porco
roncando alto, som ao que ela assustou-se e julgou espalhafatoso mas fingiu não
notar o ato deselegante. – O que quis dizer quando disse que a realidade
interna não deixa de ser externa é que o mundo não é tal como prevemos por
regras, mas sim como sentimos por idéias, sentidos e ilusões... Cada um vê o
mundo de maneira distinta, assim como disse a senhorita de maneira espontânea e
perspicaz, assim, se cada um vê o mundo da maneira que quer e bem entende, duma
maneira distinta, peculiar e diferente todos então são loucos, já que isto se
entende por loucura. Isto eu disse baseado nos preceitos de que cada pessoa
deste, e de todos os outros reinos têm valores morais diferentes, idéias das
mais variegadas, concepções de obscuras às luxuriantes e crenças das diabólicas
às angelicais, por isso o mundo não é só um. Eu diria de maneira originalíssima
que os mundos são muitos, e tantos quanto o número de pessoas que neles vivem,
como s cada um, por ver o mundo de maneira diversa o tranformasse numa veia
deste. Há tantas veias que parecemos então viver num entrelaçado infindável de
veias, sendo que o sangue que corre por todas elas é o mesmo: a essência do
mundo!
-
Quer dizer o senhor, respeitável rei... – Disse margarida consternada
com as idéias com as quais tomava contato, e procurava assimilar na medida em
que recebia aquela avalanche de informações, ao mesmo tempo que pegava uma
belíssima amostra de maçã silvestre dum cesto de prata, e logo em seguida
sentisse em seus lábios carnudos seus doces e sussurantes sulcos. – Quer dizer
que a essência é só uma mesmo a pesar de todos serem loucos, de todos terem
visões diferentes do mesmo mundo?
-
É... – Tentou concluir com dificuldade o rei, afeiçoando-se da donzela
quando notou finalmente que ela era de belíssimas feições, com uns olhos azuis
brilhantes como a alma mais pura que pudera haver visto no condado, assim quase
sem saber o que falar, enquanto a contemplava balbuciou. – É justamente isto
que eu tentava dizer, que os mundos são muitos, mas que somente uma essência
verdadeira corre por eles, é só um sangue que corre por nosso corpo, mas ele
por certo irriga órgãos tão diferentes quantos são a águia da cotovia. –
Concluiu finalmente num tom anatômico e zoológico, admirado por sua própria
afirmação e supostamente pelo brilho que via emanado daquela belíssima
mulher...
Margarida
naquele momento nada respondeu, apenas admirou-se por concluir a simplicidade
daquelas idéias, mas ao mesmo tempo embebeu-se da profundidade das mesmas,
continuou então a comer aquelas belíssimas, refinadas e requintadas iguarias,
juntamente com o rei, que neste momento ficou rubro, com um olhar acanhado e um
sorriso forçado, pois foi este o justo momento que se sentiu envolto numa
mística paixão, que decorreu mais tarde num casamento de extraordinárias
proporções, com as festas mais respeitáveis e admiráveis, nas quais eram
convidadas além das famílias mais nobres da comunidade o próprio populacho.
Enquanto à guerra anteriormente citada, esta não ocorreu, deflagrando apenas
num blefe que quinta categoria, o que tragicamente repercutiu ao rei numa
inevitável perca de muitos equitares e muitas cabeças de gado sem haver se
aproveitado devidamente das valiosas prestações de serviço do exército que se
prostrara à ele devido à aliança feita com o outro condado. Mas como na vida
não se sabe ao certo o destino de todas as coisas foi de se estimar a alegria
que o rei teve em proferir uma frase bastante conhecida, levada à posteridade
por seus condescendentes, e fixada profeticamente nos anais das mais laboriosas
regras do castelo: - Mais vale amar à disparidade da vida que esperar à
cáustica e inexistente guerra!
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