Thursday, October 31, 2024

14 - Solução para dois problemas: Arte e Vida

 

DÉCIMO QUARTO CONTO - Solução para dois problemas:  Arte e vida.

 

       No que consiste a vida? Aliás: Que é a vida? Não, muito complexo, demasiado difícil não são perguntas concatenadas à serem respondidas. Devemos apenas viver! Não, não... Também não se deve dar subterfúgios escorregadios e mundanos, deveremos no mínimo dar uma desculpa pouco mais científica aos devaneios existenciais... Não me vejo obrigado à responder estas estapafúrdias perguntas, logo me sinto muito bem em continuar andando em direção à academia de musculação. Mas que vida bela! Não nos obriga a saber que é ela, posso vivê-la sem saber que é! É como se eu tivesse um carro e não soubesse que é ou para que serve, e ainda assim continuasse a dirigi-lo. Sabemos dirigir algo que não sabemos o que é? A palavra dirigir incita algo como direção, caminho, itinerário e objetivo. Chego à assombrosa conclusão de que não estou dirigindo minha vida. Caminhando nesta calçada de belos desenhos de formatos circulares olho sempre ao chão, talvez porque não ouse olhar à frente, diante da verdade do mundo que se me depara. Ainda assim, depois de tudo que pensei não sei todavia quê é a vida. Mas que merda! Meus pensamentos de nada adiantaram! Por isto perco a paciência com este cérebro ignóbil e enganoso. Fastidiado comigo mês mo continuo caminhando nesta calçada curiosamente bela, e com sorte sem trombar com qualquer poste, pessoa ou semáforo, já que concatenado não olho sequer à frente. No entanto um laivo de consciência me invade, pois logrei ao menos saber que não estou dirigindo o carro pois não sei dirigir. Isto é ao menos um caminho, um primeiro passo à realidade. Mas quê é? Quê é isto?

         Deseducado sou, pois de tão entretido com os problemas filosóficos sequer me apresentei ao leitor destes documentos, os quais deixarei postergados à um futuro desconhecidos e possivelmente vão ou apagado. Sou Marcos Paganini, não tenho qualquer habilidade com instrumentos musicais, mas ocorre que por vezes sou acometido por vrtigens filosóficas, as quais consideram como pretuberâncias nefastas de minha personalidade, com isto, dentro do possível, tento manter em segredo estes pensamentos íntimos e acusadores, pois a filosofia é acusadora, quando conturba a paz dos pensamentos estagnados, isto é perigoso! Pode causar lesões das mais diversas, irreversíveis, não se consegue curar a beleza dum pensamento mais amplo. É justamente por isso que todos a temem,  e fogem como foge o rato do gato e o gato do cachorro. Os poucos que ousaram enfrenta-la se transformaram em pessoas curiosas, em seres fantásticos e estranhos. Sim, sim: já me olharam, quando emergido em meus acometimentos, como um louco poeta, chamado de peculiar forma esvoaçante (Adjetivos que em suma não conseguiria eu unir) e até muitos já me difamaram, o que não pude interpretar como difamação, mas como uma interpretação precipitada, chamaram-me de idiota. Se sou tudo isto o que me consideram ou não, não sei. Porque não sei o que é a vida. Sou então o meu nome: Marcos Paganini.

      Com seus devaneios Marcos Paganini atingiu finalmente a porta de sua academia de musculação, professor de musculação bastante eufórico em sua peculiar maneira de levar a aula, pois tinha lá seus surtos de filosofia, quando isto ocorria alguns estranhavam repudiando o que era dito, enquanto outros achavam engraçado aprovando de uma maneira ou outra, tudo era no mínimo material para muitos comentários adjacente entre todos os convivas do local. Era um sujeito bastante musculoso, costas largas e de umas pernas inconcebívelmente fortes, e braços descomunais. Sua feição era de uma envergadura fora do comum, demonstrava experiência, mesmo apesar de sua relativa ingênua discrepância de pensamentos, o que por muitos era interpretado como dúvida, ambigüidade e até falta de personalidade. Um nariz bastante grande, comprido e pontudo. Seus dentes eram meio tortos e amarelados, o que produzia estrondoso efeito quando começava a falar de maneira desregulada, causando nos outros um mal estar de origem desconhecida. A pesar de seus vinte e sete anos sua pele morena já demonstrava sinais de desgaste, era de se admirar no entanto a reputação de loquazes palestras das quais por muitas vezes fora ele acometido nos momentos mais impróprios que se possa imaginar. Falava sobre uma gama bastante variável de assuntos: Política, religião, desportos sub-aquáticos, filosofia, guerras, música, teatro, arte em geral, arquitetura, desenho, literatura ou até mesmo sobre animais domésticos de estimação. Se era ou não um profundo entendedor destes temas não se sabe muito ao certo, é verídico no entanto sua paixão poliglota por todos eles, não obstante este era o motivo pelo qual alguns consideravam-no como louco e outros como uma pessoa de interessante conotação com a qual poderiam, certamente palestrar sobre diversos assuntos.

      Neste dia específico Marcos Paganini estava embalado numa controvérsia existencial fora do comum, ao chegar à academia procurou conter seus pensamentos, principalmente pelo motivo de que muitas vezes se flagrou-se em lugares públicos e ambientes sociais como restaurantes ou mesmo cinemas e teatros pensando alto, o que lhe proporcionara comentários de baixo calão, era tamanho seu envolvimento com as idéias que não notava o que lhe diziam os outros, sim, um homem dentro de si mesmo, abstraído da realidade, ou deveríamos dizer introduzido à realidade? Bem, isto agora não queremos saber, senão que era bastante introspectivo, mas que tentava, na medida do possível, controlar-se. Conteve-se, segurou-se e quase gritou à si mesmo: - Cale-se! Só não o fez por estar neste preciso momento dentro do corredor principal da academia. Mas não era isto que iria fazer durante o expediente? Iria calar sua liberdade e criatividade em nome da produtividade comercial? Que assim seja disse ele, pensando na mesma estrofe que acabáramos de recitar. Já estando com seu uniforme de coloração alaranjada, com bela estampa com o signo da academia na parte central e frontal de sua camisa: “Strongest People and Strongest Brain”, curiosamente este era o nome da academia, não se sabe exatamente o motivo, mas assim tinha sido definido, a insígnia era definida por um corpo masculino de proporções anormais, com a cabeça aberta e um cérebro saindo para fora de tão grande, ao lado do desenho eram ornadas as letras iniciais: “SPSB”. Ao chegar à sala Marcos Paganini se transformou no exímio professor de musculação, notando que havia uma aluna nova logo foi falar com ela neste tom:

-          Há! Então se chama Eustácia? Sim, sim... bonito nome. Claro: alongamento é bastante importante, mas deve-se fazer aquecimento com 60% da freqüência cardíaca máxima, para que depois façamos um trabalho de resistência muscular localizado que representa naturalmente de 55 à 65% da resistência de força máxima sabe?

-          Não. – Disse a mulher de maneira bastante acanhada, não sabia definitivamente daquilo.

-          Pois assim é... Depois a seqüência de exercícios intercalados por braço e perna: Cadeira extensora, pulley costas, mesa flexora, supino máquina, cadeira adutora, elevação lateral, cadeira abdutora, rosca alternada e tríceps com polia alta. Sabe?

-          Não. – Disse a mulher, que agora além de acanhada se mostrara com uma pinta de constrangimento por ser totalmente ignorante naqueles assuntos técnicos.

-          Claro Eustácia: deveremos trabalhar os músculos quadríceps femoral, grande dorsal, redondo maior, redondo menor, rombóide, infra espinhal, bíceps, semitendíneo, semimembranáceo, tríceps braquial e assim por diante numa seqüência que seja adequada. Há o fato de que dentro de cinco ou seis horas a hipertrofia adquirida é dita aguda, com um acúmulo de ácido láctico e hidrogênio, é evidente que com a inflamação haverão substâncias vasoativas. Sabe?

-          Não! Não sei! – Disse Eustácia já com as faces rosadas de tanto enfado.

-          Pois assim é. – Continuou insistentemente Paganini. – Serotonina, bradicinina e prostraglandinas. O fibrogênio também é enviado às lesões provocadas pela inflamação. E também...

-          Mas que raios o partam homem! – Interrompeu bruscamente Eustácia às margens dum louco desespero. - A mim me basta treinar! Não quero saber que acontece ou não com o corpo, aliás, nem vim à academia para isto. Não me entenda mal, por favor, não tenho paciência para aqui ficar estudando biologia ou fisiologia que seja. Aliás, desejaria sim que tudo isto se se definha, pois gosto sim das artes... – Eustácia no final de sua elucubração deixando o nervosismo de lado olhou ao longe com um vagar apaixonado pela própria palavra proferida.

-          Arte? – Perguntou Marcos com um ar de estranheza.

-          Sim professor! Quadros de arte para falar mais especificadamente, adoro isto. É uma atividade que me acompanha os momentos de lazer, também ministro um curso de artes barrocas e modernas no instituto tal e qual...

-          Mas que curioso, este é um assunto pelo qual tenho constante afeição, mas veja você o quão artísticas são as denominações das substâncias vasoativas.

-          Nisto definitivamente, mesmo querendo, não posso contrariá-lo.

-          Sim: a arte se mescla de maneira gloriosa com a ciência, basta buscarmos os recônditos em que as combinações estão escondidas.

-          Não acha esta ligação um tanto estranha, e até inexistente? – Disse Eustácia já se afeiçoando pelo caráter do professor, que demonstrara maleabilidade no assunto.

-          Não! Claro que existe, basta interpretar da maneira correta o que se veja! Não é a arte estudada pela psicologia? Não é a musculação estudada pela fisiologia? Quê é a musculação senão a formação da força de vontade, a personificação da estrondosa capacidade humana, que até então era num âmbito pessoal desconhecida, isto é a arte de viver.

-          Julga então que está vinculada a arte à fisiologia?

-          Desde sempre, olhe ao seu redor! – Disse ironicamente o professor.

-          Bem, me vejo obrigada a concordar que tudo depende de como interpretamos o que vemos, logo não é somente de fisiologia que vive a musculação...

-          Não, definitivamente não... aqui há arte, vida, teatro, literatura, filosofia e tudo mais. Basta saber interpretar!

-          Acaso não vai o senhor demasiadamente longe?

-          Negativo! Neste recinto consigo ver uma gama de detalhes tão abrangente quanto é a arte por assim dizer.

-          Peço desculpas por ter sido tão petulante com você! Não imaginava que... que..

-          Que não há restrições científicas?

-          É isto mesmo. – Disse satisfeita Eustácia, quando o professor captou seu pensamento.

-          Bem, também há fisiologia, aliás é o principal por estas bandas, por isto geralmente as pessoas têm uma visão um tanto delimitada deste tema, desta sala por assim dizer, mas o fato real é que o esporte como um todo abarca tanto moral como filosofia em seu contexto, é um acontecimento como pintar um quadro, no qual colocaremos nosso inconsciente dentro, por mais que tentemos fugir à isto, é inevitável: a maneira como praticamos um esporte demonstra o que há de verdadeiro em nós. Esta é a verdade nua e crua. Não há como fugir à isto. Inserem-se valores como sociabilização, e logo conseqüentemente respeito, confraternização, e vivências. Dá margem às idéias a partir do momento em que entramos em contato com a percepção corporal e espaço física, um tipo particular de contato com a realidade por assim dizer. Seria isto um estado alterado de consciência? Não sei. Mas é evidente que a arte como um todo se caracteriza por ser algo de grande abrangência de idéias, de elasticidade assombrosa, assim é a vida! O esporte quando submetido à visão de um fenômeno interligado com as sensações, idéias e percepções do ser humano passa a ter uma conotação intergaláctica, por assim dizer, e por isto se parece com a arte, pela abrangência de detalhes. Mas quê seria isto senão a vida?

      Neste momento Eustácia ficou boquiaberta, de tanta atenção esquecera-se dos movimentos que deveria fazer no exercício de rosca alternada, deixando inclusive um dos halteres cair ao solo, causando certo alarde por parte de uma outra aluna que fazia abdominais oblíquos logo abaixo. Uma negligência imperdoável, que causou por certo a produção de muitas serotoninas, prostraglandinas e bradicininas no organismo daquela outra. Fato surpreendente que deixou toda a horda de alunos estupefatos, com exceção do professor Marcos Paganini, que nada entende de música, mas que estando num letárgico e hipnótico devaneio descobrira finalmente o ponto nevrálgico de suas mais íntimas divagações: descobrira o quê era um carro!

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