DÉCIMO
QUARTO CONTO - Solução para dois problemas:
Arte e vida.
No que
consiste a vida? Aliás: Que é a vida? Não, muito complexo, demasiado difícil
não são perguntas concatenadas à serem respondidas. Devemos apenas viver! Não,
não... Também não se deve dar subterfúgios escorregadios e mundanos, deveremos
no mínimo dar uma desculpa pouco mais científica aos devaneios existenciais...
Não me vejo obrigado à responder estas estapafúrdias perguntas, logo me sinto
muito bem em continuar andando em direção à academia de musculação. Mas que
vida bela! Não nos obriga a saber que é ela, posso vivê-la sem saber que é! É
como se eu tivesse um carro e não soubesse que é ou para que serve, e ainda
assim continuasse a dirigi-lo. Sabemos dirigir algo que não sabemos o que é? A
palavra dirigir incita algo como direção, caminho, itinerário e objetivo. Chego
à assombrosa conclusão de que não estou dirigindo minha vida. Caminhando nesta
calçada de belos desenhos de formatos circulares olho sempre ao chão, talvez
porque não ouse olhar à frente, diante da verdade do mundo que se me depara.
Ainda assim, depois de tudo que pensei não sei todavia quê é a vida. Mas que
merda! Meus pensamentos de nada adiantaram! Por isto perco a paciência com este
cérebro ignóbil e enganoso. Fastidiado comigo mês mo continuo caminhando nesta
calçada curiosamente bela, e com sorte sem trombar com qualquer poste, pessoa
ou semáforo, já que concatenado não olho sequer à frente. No entanto um laivo
de consciência me invade, pois logrei ao menos saber que não estou dirigindo o
carro pois não sei dirigir. Isto é ao menos um caminho, um primeiro passo à
realidade. Mas quê é? Quê é isto?
Deseducado
sou, pois de tão entretido com os problemas filosóficos sequer me apresentei ao
leitor destes documentos, os quais deixarei postergados à um futuro
desconhecidos e possivelmente vão ou apagado. Sou Marcos Paganini, não tenho
qualquer habilidade com instrumentos musicais, mas ocorre que por vezes sou
acometido por vrtigens filosóficas, as quais consideram como pretuberâncias
nefastas de minha personalidade, com isto, dentro do possível, tento manter em
segredo estes pensamentos íntimos e acusadores, pois a filosofia é acusadora,
quando conturba a paz dos pensamentos estagnados, isto é perigoso! Pode causar
lesões das mais diversas, irreversíveis, não se consegue curar a beleza dum
pensamento mais amplo. É justamente por isso que todos a temem, e fogem como foge o rato do gato e o gato do
cachorro. Os poucos que ousaram enfrenta-la se transformaram em pessoas
curiosas, em seres fantásticos e estranhos. Sim, sim: já me olharam, quando
emergido em meus acometimentos, como um louco poeta, chamado de peculiar forma
esvoaçante (Adjetivos que em suma não conseguiria eu unir) e até muitos já me
difamaram, o que não pude interpretar como difamação, mas como uma
interpretação precipitada, chamaram-me de idiota. Se sou tudo isto o que me
consideram ou não, não sei. Porque não sei o que é a vida. Sou então o meu
nome: Marcos Paganini.
Com seus
devaneios Marcos Paganini atingiu finalmente a porta de sua academia de
musculação, professor de musculação bastante eufórico em sua peculiar maneira
de levar a aula, pois tinha lá seus surtos de filosofia, quando isto ocorria
alguns estranhavam repudiando o que era dito, enquanto outros achavam engraçado
aprovando de uma maneira ou outra, tudo era no mínimo material para muitos
comentários adjacente entre todos os convivas do local. Era um sujeito bastante
musculoso, costas largas e de umas pernas inconcebívelmente fortes, e braços
descomunais. Sua feição era de uma envergadura fora do comum, demonstrava
experiência, mesmo apesar de sua relativa ingênua discrepância de pensamentos,
o que por muitos era interpretado como dúvida, ambigüidade e até falta de
personalidade. Um nariz bastante grande, comprido e pontudo. Seus dentes eram
meio tortos e amarelados, o que produzia estrondoso efeito quando começava a
falar de maneira desregulada, causando nos outros um mal estar de origem
desconhecida. A pesar de seus vinte e sete anos sua pele morena já demonstrava
sinais de desgaste, era de se admirar no entanto a reputação de loquazes
palestras das quais por muitas vezes fora ele acometido nos momentos mais
impróprios que se possa imaginar. Falava sobre uma gama bastante variável de
assuntos: Política, religião, desportos sub-aquáticos, filosofia, guerras,
música, teatro, arte em geral, arquitetura, desenho, literatura ou até mesmo
sobre animais domésticos de estimação. Se era ou não um profundo entendedor
destes temas não se sabe muito ao certo, é verídico no entanto sua paixão
poliglota por todos eles, não obstante este era o motivo pelo qual alguns
consideravam-no como louco e outros como uma pessoa de interessante conotação
com a qual poderiam, certamente palestrar sobre diversos assuntos.
Neste dia
específico Marcos Paganini estava embalado numa controvérsia existencial fora
do comum, ao chegar à academia procurou conter seus pensamentos, principalmente
pelo motivo de que muitas vezes se flagrou-se em lugares públicos e ambientes
sociais como restaurantes ou mesmo cinemas e teatros pensando alto, o que lhe
proporcionara comentários de baixo calão, era tamanho seu envolvimento com as
idéias que não notava o que lhe diziam os outros, sim, um homem dentro de si
mesmo, abstraído da realidade, ou deveríamos dizer introduzido à realidade?
Bem, isto agora não queremos saber, senão que era bastante introspectivo, mas
que tentava, na medida do possível, controlar-se. Conteve-se, segurou-se e
quase gritou à si mesmo: - Cale-se! Só não o fez por estar neste preciso
momento dentro do corredor principal da academia. Mas não era isto que iria
fazer durante o expediente? Iria calar sua liberdade e criatividade em nome da
produtividade comercial? Que assim seja disse ele, pensando na mesma estrofe que
acabáramos de recitar. Já estando com seu uniforme de coloração alaranjada, com
bela estampa com o signo da academia na parte central e frontal de sua camisa:
“Strongest People and Strongest Brain”, curiosamente este era o nome da
academia, não se sabe exatamente o motivo, mas assim tinha sido definido, a
insígnia era definida por um corpo masculino de proporções anormais, com a
cabeça aberta e um cérebro saindo para fora de tão grande, ao lado do desenho
eram ornadas as letras iniciais: “SPSB”. Ao chegar à sala Marcos Paganini se
transformou no exímio professor de musculação, notando que havia uma aluna nova
logo foi falar com ela neste tom:
-
Há! Então se chama Eustácia? Sim, sim... bonito nome.
Claro: alongamento é bastante importante, mas deve-se fazer aquecimento com 60%
da freqüência cardíaca máxima, para que depois façamos um trabalho de
resistência muscular localizado que representa naturalmente de 55 à 65% da
resistência de força máxima sabe?
-
Não. – Disse a mulher de maneira bastante acanhada, não
sabia definitivamente daquilo.
-
Pois assim é... Depois a seqüência de exercícios
intercalados por braço e perna: Cadeira extensora, pulley costas, mesa flexora,
supino máquina, cadeira adutora, elevação lateral, cadeira abdutora, rosca
alternada e tríceps com polia alta. Sabe?
-
Não. – Disse a mulher, que agora além de acanhada se
mostrara com uma pinta de constrangimento por ser totalmente ignorante naqueles
assuntos técnicos.
-
Claro Eustácia: deveremos trabalhar os músculos
quadríceps femoral, grande dorsal, redondo maior, redondo menor, rombóide,
infra espinhal, bíceps, semitendíneo, semimembranáceo, tríceps braquial e assim
por diante numa seqüência que seja adequada. Há o fato de que dentro de cinco
ou seis horas a hipertrofia adquirida é dita aguda, com um acúmulo de ácido
láctico e hidrogênio, é evidente que com a inflamação haverão substâncias
vasoativas. Sabe?
-
Não! Não sei! – Disse Eustácia já com as faces rosadas
de tanto enfado.
-
Pois assim é. – Continuou insistentemente Paganini. –
Serotonina, bradicinina e prostraglandinas. O fibrogênio também é enviado às
lesões provocadas pela inflamação. E também...
-
Mas que raios o partam homem! – Interrompeu bruscamente
Eustácia às margens dum louco desespero. - A mim me basta treinar! Não quero
saber que acontece ou não com o corpo, aliás, nem vim à academia para isto. Não
me entenda mal, por favor, não tenho paciência para aqui ficar estudando
biologia ou fisiologia que seja. Aliás, desejaria sim que tudo isto se se
definha, pois gosto sim das artes... – Eustácia no final de sua elucubração
deixando o nervosismo de lado olhou ao longe com um vagar apaixonado pela própria
palavra proferida.
-
Arte? – Perguntou Marcos com um ar de estranheza.
-
Sim professor! Quadros de arte para falar mais
especificadamente, adoro isto. É uma atividade que me acompanha os momentos de
lazer, também ministro um curso de artes barrocas e modernas no instituto tal e
qual...
-
Mas que curioso, este é um assunto pelo qual tenho
constante afeição, mas veja você o quão artísticas são as denominações das
substâncias vasoativas.
-
Nisto definitivamente, mesmo querendo, não posso
contrariá-lo.
-
Sim: a arte se mescla de maneira gloriosa com a
ciência, basta buscarmos os recônditos em que as combinações estão escondidas.
-
Não acha esta ligação um tanto estranha, e até
inexistente? – Disse Eustácia já se afeiçoando pelo caráter do professor, que
demonstrara maleabilidade no assunto.
-
Não! Claro que existe, basta interpretar da maneira
correta o que se veja! Não é a arte estudada pela psicologia? Não é a
musculação estudada pela fisiologia? Quê é a musculação senão a formação da
força de vontade, a personificação da estrondosa capacidade humana, que até
então era num âmbito pessoal desconhecida, isto é a arte de viver.
-
Julga então que está vinculada a arte à fisiologia?
-
Desde sempre, olhe ao seu redor! – Disse ironicamente o
professor.
-
Bem, me vejo obrigada a concordar que tudo depende de
como interpretamos o que vemos, logo não é somente de fisiologia que vive a
musculação...
-
Não, definitivamente não... aqui há arte, vida, teatro,
literatura, filosofia e tudo mais. Basta saber interpretar!
-
Acaso não vai o senhor demasiadamente longe?
-
Negativo! Neste recinto consigo ver uma gama de
detalhes tão abrangente quanto é a arte por assim dizer.
-
Peço desculpas por ter sido tão petulante com você! Não
imaginava que... que..
-
Que não há restrições científicas?
-
É isto mesmo. – Disse satisfeita Eustácia, quando o
professor captou seu pensamento.
-
Bem, também há fisiologia, aliás é o principal por
estas bandas, por isto geralmente as pessoas têm uma visão um tanto delimitada
deste tema, desta sala por assim dizer, mas o fato real é que o esporte como um
todo abarca tanto moral como filosofia em seu contexto, é um acontecimento como
pintar um quadro, no qual colocaremos nosso inconsciente dentro, por mais que
tentemos fugir à isto, é inevitável: a maneira como praticamos um esporte
demonstra o que há de verdadeiro em nós. Esta é a verdade nua e crua. Não há
como fugir à isto. Inserem-se valores como sociabilização, e logo
conseqüentemente respeito, confraternização, e vivências. Dá margem às idéias a
partir do momento em que entramos em contato com a percepção corporal e espaço
física, um tipo particular de contato com a realidade por assim dizer. Seria
isto um estado alterado de consciência? Não sei. Mas é evidente que a arte como
um todo se caracteriza por ser algo de grande abrangência de idéias, de
elasticidade assombrosa, assim é a vida! O esporte quando submetido à visão de
um fenômeno interligado com as sensações, idéias e percepções do ser humano
passa a ter uma conotação intergaláctica, por assim dizer, e por isto se parece
com a arte, pela abrangência de detalhes. Mas quê seria isto senão a vida?
Neste momento
Eustácia ficou boquiaberta, de tanta atenção esquecera-se dos movimentos que
deveria fazer no exercício de rosca alternada, deixando inclusive um dos
halteres cair ao solo, causando certo alarde por parte de uma outra aluna que
fazia abdominais oblíquos logo abaixo. Uma negligência imperdoável, que causou
por certo a produção de muitas serotoninas, prostraglandinas e bradicininas no
organismo daquela outra. Fato surpreendente que deixou toda a horda de alunos
estupefatos, com exceção do professor Marcos Paganini, que nada entende de
música, mas que estando num letárgico e hipnótico devaneio descobrira
finalmente o ponto nevrálgico de suas mais íntimas divagações: descobrira o quê
era um carro!
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